quinta-feira, 9 de julho de 2020




Opinião
[texto publicado no Diário de Aveiro no dia 03jun20]



"Admirável Mundo Novo" [1932] é uma parábola sobre a desumanização dos seres humanos. Na utopia negativa descrita, o Homem foi subjugado pelas suas invenções e o preço da liberdade é a vigilância eterna.» (Aldous Huxley) [1894 – 1963] (*1)


O Digital e as Redes de Vizinhança?


Uma tertúlia



PLATAFORMAcidades no Diário de Aveiro

Pompílio Souto (*)

Arquiteto; Urban Designer; ex-Docente Universitário






Esta é uma iniciativa muito interessante na qual vejo envolvido o José Mota – cidadão a quem todos, repetidamente ficamos a dever mais uma.
Nem sempre estou totalmente de acordo com ele, mas devo-lhe a generosidade da desestabilização arguta e civicamente empenhada e a partilha de conhecimento relevante, sempre em favor do combate à indiferença e à inação que nos tolhem o passo, quando não mesmo o pensamento.
Obrigado, pá!

Desta vez é um ciclo de tertúlias nas redes sociais – "Admirável Mundo Novo?" – para refletir sobre o impacto da pandemia nas (i) formas de trabalho, de (ii) interação social e de (iii) organização coletiva (*1).
Sublinhando-se que, se com o surto pandémico a interação social se digitalizou – enfraquecendo as ligações tradicionais nas comunidades –, também com ele despontou uma enorme energia de voluntariado – valorizando a responsabilidade social dos cidadãos.
Mas que "tipo de energia" de resposta é essa que surgiu?
- Essa "Resposta Voluntária" será eficaz, eficiente e Sustentável?
E esse "modo relacional", que efeito terá nas comunidades locais?
- Esse "Relacionamento Digital" vai matar as Redes de Vizinhança?


Este texto procura responder a estas interrogações e assume, comenta ou contradita o que foi dito na referida tertúlia. É, portanto – para o bem e para o mal –, um texto da minha responsabilidade e que terá continuações.


ER-REI I , O DOS MICROFONES
1973, ÓLEO S/ TELA, 100X80CM
JORGE PINHEIRO


1)
Quase sempre sob a forma interrogativa foram sendo colocadas questões importantes sobre o pensar para agir. Só que antes de pensar, julgo necessário conhecer, nas comunidades e seus movimentos, a génese das evidências para que, a ação pensada seja "estratégica", como na tertúlia se sublinhou ser importante.

Vivemos um "tempo comprimido", em "não lugares" onde escasseiam momentos e modos de "transmitir emoções" e ter "pausas para pensar": – Agimos e Damos, e pronto!
Agimos dinamizando ou aderindo a movimentos de voluntariado. Damos a bondade de natureza caritativa que releva de uma cultura cristã, o que não sendo mau deixa repetidamente por resolver as causas do que a tornava necessária.

E fazemos tudo isso porque somos, de facto, muito bons em emergências.

Reconheçamos, no entanto que preferimos "protagonizar respostas" do que suscitar ou incrementar iniciativas e processos, e que sendo bons a dar, não o somos tanto a "libertar" e muito menos a "autonomizar", sejam pessoas, sejam comunidades.
Reconheçamos, ainda que infelizmente o que o sobra desse "pronto agir e dar inicial" é, quase sempre, muito pouco.
Temos aliás, entre nós e no país, alguns muito infelizes exemplos disso mesmo.

2)
A dádiva pressupõe empatia e, tal como noutros países, o ativismo que isso suscita tem diferentes naturezas: a lúdica, a solidária e a estratégica.
Independentemente da bondade e interesse dos dois primeiros é no último que temos de nos concentrar agora: o "ativismo estratégico".

Só este - o ativismo estratégico - nos permitirá caminhar, quer para melhores modos de vida e de relação com o planeta, quer para soluções políticas e empresariais menos extremadas e gananciosas.
Ou seja: - Impõe-se um regresso às ideologias, digo eu, coisa de que nos alheámos primeiro, para depois as deixarmos de conhecer e discutir em benefício da coisa e causa públicas, passando a focar-nos em lustrosos resultados, de "operações de gestão técnica", sempre e cada vez mais, menos escrutinadas.

3)
À luz disso deixámos que se destruíssem funções essenciais do Estado, coisas para a "reconstrução" das quais nos desdobramos agora em processos de "crowdfundings", nuns casos imperativos e noutros compulsivos, vejam lá…

Não, não foi por acaso que nós e a Europa se desindustrializaram em favor, não da China, mas sim do lucro fácil e individualizado. Não, não foi por acaso que se privatizaram recursos e bens e serviços, mesmo que estratégicos para a nossa soberania e vida coletiva.

Na verdade, à custa da desbragada realocação do "poder", dos tempos ditos da troica, quase tudo se fez em favor do "Estado público mínimo" e do "Poder privado máximo" – sendo o primeiro "a seguradora" do segundo, obviamente.

4)
A consideração da forma física das coisas – do "espaço", digo eu –, tem de ser retomada. Seja ao nível do público ou doméstico, seja ao nível do familiar ou comunitário, temos de incluir mais conhecimento e saber nos processos de conceção e de identificação dos respetivos destinatários, vocações e usos.
E nada disto – que é muitíssimo e multidisciplinar – é importante que seja "autoral", meus caros concidadãos e arquitetos. Importa é que seja responsivo, flexível e apropriável. O resto são, quase só "folastrias" ao serviço de pequenos egos.

Lamento, no entanto, discordar da necessidade de rever standards de edificabilidade. Temos é de aumentar, quer a responsabilidade científica, técnica, profissional e cívica" de quem desenha, quer a transparência das decisões de quem foi eleito para o encomendar, quer o empoderamento das comunidades e cidadãos seus destinatários – tudo isso no quadro de uma democracia representativa avançada, obviamente.

5)
Lamento também não achar que Aveiro tenha movimentos cívicos estruturantes. E lamento ainda mais que Aveiro não seja, hoje, um bom berçário de tal tipo de coletivos: coletivos socioculturalmente transversais, reconhecidos como tal e capazes da consistência operativa que gera o saber e informa o poder.

Mas a emergência de tais movimentos é imparável e bem-vinda. E isso acontecerá mais nas Cidades? Será mais digital? Seguramente que sim, mas não será "o digital que vai matar as redes de vizinhança".
Essas – as redes de vizinhança – vão crescer e são essenciais.
O virtual anima, questiona, interliga e poderá ajudar, quanto mais não seja como "depósito de recursos e de meios".

Também não me parece que seja da "pressão sobre os políticos e do que é que eles serão capazes de ceder dos seus poderes, que cresça o poder dos movimentos cívicos".
Estes têm é de, com o conhecimento e as competências que incrementem, ajudar a reconstruir a Vida com Todos – Cidadãos e Cidade, designadamente.

A má notícia é que ainda há muitos que não reconhecem nisso uma coisa positiva e necessária.
Mas a boa notícia é a de que todos estamos a prazo, seja na cidadania, na política ou na vida. É que "a mudança" é a lei da vida.
E aqueles que apenas olham para o passado ou para o presente vão, seguramente, perder o futuro.


(*1), Iniciativa do 23 Milhas, GrETUA, MPRUrbano-UA e Vizinhos de Aveiro; Moderação de Prof. José Mota, c/ Abel Coentrão (do Público) e Giovanni Allegretti (investigador do CES-UC)

Texto da responsabilidade de (*) Pompílio Souto, Coordenador da PLATAFORMAcidades; grupo de reflexão cívica NOTA: Veja outros textos desta série no Blogue Plataforma Cidades || Contacte-nos: plataformacidades.op@gmail.com 

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