quarta-feira, 29 de agosto de 2007

O Interior e as Cidades [1]

Minas de Beça; Beça; Boticas
bem vai João Ferrão; libertemos o desenvolvimento das regras do mercado

1)
Da borda d'água à serra e da serra à praia, viagens e estadias, ano após ano, todas suscitam uma mesma convicção: tudo vai – progressivamente –, melhorando, até mesmo quando, sempre piorando, a coisa acaba, ou por se tornar irrelevante, ou por gerar o gesto libertário: p'ró lixo, e já!

Cada vez mais, tenho para mim que, depois de "morta a fome", o pior que temos é mesmo, a "boçalidade endinheirada" e a "ignorância, com meios" que geram a "presunção, assumida, da total estupidez" dos outros.

2)
A propósito. Diz-se num editorial do Público (*1) que "o Governo desistiu do interior" e que, agora, a sua "prioridade são as cidades" (...) onde, só em duas delas (Lisboa e Porto), se concentram 40 por cento dos portugueses. Reconhece-se, entretanto, que "duas décadas de promessas politicas, fundos da UE" e contributos nacionais (é bom lembrar), não impediram que as aldeias continuassem a morrer. Conclui-se que, perante isto, João Ferrão – Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades –, "prefere encarar os limites das políticas públicas de frente": "o Estado já não consegue influenciar um processo de desenvolvimento submetido às regras do mercado que determina a morte da periferia", diz-se. "Mas o reconhecimento disto implica um perigo", avisa, pronta e não ingenuamente, o editorialista: "o abandono de vastas zonas do interior à sua sorte comporta custos que as gerações futuras terão de pagar. A degradação do património construído, o recuo da actividade agrícola, as ameaças à biodiversidade e os perigos de erosão".

3)
O editorial em causa tem uma segunda parte centrada nas questões das cidades e no mesmo jornal publica-se o trabalho "Ordenamento Nova geração de politicas dá prioridade às cidades"; uma e outra coisa são interessantes, mas, por ora, retomemos a primeira parte daquele.

É despropositado (e de modo intencionalmente "alarmista"?) afirmar que "o Governo desistiu do interior" uma vez que, ao invés – tal como o texto implicitamente reconhece –, o que o Governo fez foi mudar de paradigma analítico e modelo de intervenção. O que vem fazendo é, nomeadamente, (i) inverter a correlação que o planeamento físico tradicionalmente estabelece entre "qualificação de território(s)" & "benefício da(s) pessoa(s)", colocando esta(s) em primeiro lugar e "programando" aquele(s) em função das necessidades e aspirações desta(s) e, complementarmente, cuidando da sustentabilidade das soluções, (ii) adoptando, para além disso, a "concentração de meios" e a "redução selectiva de objectivos", como estratégia de potenciação dos efeitos. O resto é (mais ou menos) treta, senão vejamos.

Se o que no interior – em muitos casos –, sobra de povoamento corresponde a algum "modelo", este é "obsoleto, desqualificador e insustentável"; por isso – e por muito que tal nos custe a todos –, o que há que fazer não é "abandona-lo" – como "piamente" sugere o editorialista que não se faça –, é "reocupa-lo" com o que sempre (e quase só) lá haveria de ter estado (a floresta e outros), caso não fosse esta nossa atávica (?) "senha predadora" e "destino anarco-individualista".
A densidade de ocupação territorial seria mais conforme com a de países como o nosso; as infra-estruturas, os equipamentos e, dum modo geral, os investimentos seriam muito mais eficazes, reduzindo os "custos que nós e as gerações passadas" temos vindo a suportar (coisa de que o editorialista se esquece). Para além disso – e contrariamente ao que o mesmo teme – os "custos que as gerações futuras terão de pagar" com "degradações", "recuos", "ameaças" e "perigos" que enumera (ver 2, acima), talvez sejam, de facto, muito menores; digo eu, coisa que vale pelo menos tanto quanto a contrária, ou será que não?

4)
Sejamos sérios e reconheçamos que, felizmente, bem vai João Ferrão e ajudemo-lo, isso sim, a chegar onde temo que não possa: "influenciar um processo de desenvolvimento submetido às regras do mercado", coisa que, essa sim é causa dos maiores males.

(*1), de 20AGO07, de Manuel Carvalho
(Crónica publicada no JN Norte, em 22AGO07)