quarta-feira, 22 de julho de 2020




Opinião
[texto publicado no Diário de Aveiro no dia 24JUN20]


As Bibliotecas [1]



PLATAFORMAcidades no Diário de Aveiro


Pompílio Souto (*)

Arquiteto; Urban Designer; ex-Docente Universitário


Das Bibliotecas em Aveiro falarei de quatro: duas montadas em Carrinhas e outras tantas em Edifícios. Pela mão da Câmara acabam de nos chegar três, satisfazendo-nos o quotidiano e enfeitando-nos o imaginário.

É bom que duma assentada tanto nos seja disponibilizado. E melhor será ainda se o aproveitarmos para o gozo de o viver, para o prazer de o usar e para o proveito de com ele aprender – aprender sempre, sobretudo, o quão pouco afinal sabemos.


as Carrinhas

1.
Comecemos pelas "Carrinhas": a Nova, façanhuda, herda a responsabilidade de dar futuro ao conceito e trabalho da Velhinha; desta, graciosa, espera-se a sabedoria, a independência e a disponibilidade para ensinar.

> A carrinha Nova veio juntar-se à Velhinha – uma Citroën HY – introduzida pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes (SIB) da Fundação Calouste Gulbenkian, criado em 1958 sob proposta de Branquinho da Fonseca (*1).
Pretendia-se "promover (…) o gosto pela leitura (…) o nível cultural dos cidadãos, [garantindo] o livre acesso às estantes, o empréstimo domiciliário e gratuitidade do serviço" (*2).
Os livros eram selecionados e incluíam alguns não do agrado do estado novo. Os "Encarregados" da carrinha "orientavam o leitor nas escolhas", sendo muitos deles "intelectuais de mérito", como Alexandre O’Neill ou Herberto Hélder, p.e.

> O sucesso fez crescer os custos da iniciativa ao que juntou a falta de contributos dos parceiros: disso resultou que o serviço estivesse para ser extinto em fevereiro de 1974.
Salvou-o o 25 de Abril.
Sob a direção de David Mourão-Ferreira [1981 a 1996] o SBI passou a incluir a difusão cultural com sessões de leitura, exposições e debates com autores.
Mas em 1983 o SBI foi, primeiro reorientado para um contexto sociocultural de menores atrasos e dificuldades dos seus destinatários e veio, depois a ser extinto em 2002.

Sendo verdade que a oferta havia aumentado muito e que o Programa Nacional de Leitura Pública [de 1987] atribuiu essa responsabilidade ao Estado – que a foi cumprindo – a verdade é, também, que sempre houve comunidades onde os livros e o debate cultural pouco chegaram.

2.
Fez bem, pois, a Câmara de Aveiro: restabeleceu o serviço e manteve o seu espírito original – a promoção cultural feita a partir do livro. Veremos em que é que isso se traduz e se o que, entretanto se lhe acrescenta em funcionalidades administrativas não utilitariza ou banaliza o referente.

> Para a ocupação dispersa e não polinucleada que se reconhece, é positivo fazer circular um "posto municipal de informação".
Mas dado que se aumenta a frota de distribuição e os pontos de apoio, não seria melhor fazer com que, ou os meios ou as rotas, tivessem algum grau de diferenciação, assumindo-a numa rede virtuosa com nós sediados, não só nos lares e escolas, mas também (e porque não?) nos centros de ciência, associações, escolas artísticas, museus e universidade, bem como empresas, espaços públicos de bairros e de unidades de vizinhança e juntas de freguesia?

É que se "a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem", como diz Umberto Eco (*3).


os Edifícios

1.
O Edifício que foi a Escola do Magistério Primário de Aveiro e depois a Biblioteca Municipal vê-se agora órfão de um futuro que carece ponderação cuidada e opções previamente conhecidas.
No agora designado Edifício Fernado Távora, acaba de se concluir uma recuperação onde se investiram 2,5 milhões de euros, para aí reinstalar a dita Biblioteca Municipal e outros serviços de diferente natureza.
> O que haveria de ser dito sobre os dois casos não cabe nesta crónica. No entanto, e dado que deste texto o que mais importa são as ilações e aprendizagens que se possam extrair – mais centradas em contextos e processos, do que em casos e protagonistas – é pelo Edifício Fernando Távora que começo.

2.
Tal Edifício é uma peça de um projeto, de um plano que assume uma ideia de cidade para um Centro Histórico com singularidades ambientais, físicas e vivenciais – de conjunto e detalhe – bastante fortes. Quem nisso trabalhou foram académicos e profissionais muito qualificados e bem conceituados, uns no seu tempo, outros ainda hoje.
No entanto o que eles, e quem nos governou, nos deixaram nesses espaços – o do Canal Central e o da Praça da República –, foram planos, projetos e obras inacabados ou alteradas.
Porquê?

3.
A Prof.ª Doutora Maria José Curado publicou recentemente um livro – "Evolução Urbana de Aveiro" (*4) – cuja leitura recomendo: ajuda a equacionar respostas para pergunta feita e para as que seguem:
- Será que a recuperação do Edifício FT deveria ter-se ficado pela remoção do rés-do-chão em vidro que lhe haviam acrescentado?
- Se sim, porquê? Porque é a "peça de arquitetura" – e já agora de "autor" – que unicamente interessa ou também conta,
. quer o papel que ela desempenha, ou não, da Praça e no Plano de Fachada nascente do Canal Central,
. quer as condições de fruição e vida que ela induz naquelas unidades espaciais?
- Será que à peça agora recuperada não continua a faltar o complemento edificado de enquadramento que o projeto previa para poente-sul, junto à Caixa Geral de Depósitos?
- Se sim, porque não se cumpriu o projeto neste caso? Porque já não estava em causa um "peça de arquitetura" mas "um troço de cidade"?
- Será que tudo isso, e o mais que fez ou deixou de fazer, não deveriam ser revisitados – e expostos publicamente – para que todos aprendêssemos com isso?
> "O Plano de Távora para Aveiro (…) insere-se neste ambiente de reflexão (…) próprio dos planos experimentais em Portugal durante a década de 60 (*5).
Tal Plano "tem como objetivo modernizar (…) um dos espaços centrais da cidade (…) e criar-lhe uma nova identidade", diz-se em investigação dedicada. (*5)
> Previa-se a construção de uma Torre no sítio do Fórum; a demolição da Capitania para aí fazer uma Ponte, Ponte esta que com outra, ligando o Rossio ao Albói, transformaria o Canal Central num Espelho de Água. Espelho de Água esse que seria ladeado, a norte, por Edificações como as do Clube dos Galitos e do Gato Preto, que seriam o "modelo" para substituir o conjunto Arte Nova (felizmente ainda) existente…




> Voltar a tudo isto – com seriedade e sem tabus – seria uma oportunidade para sublinhar que o conhecimento que informa as ciências aplicadas tem um tempo e que isso não é irrelevante.
Serviria, também, para acrescentar valor à figura que foi Fernando Távora, enfatizando o quanto um mestre soube aprender para o essencial da sua obra posterior, nomeadamente a de professor.
Finalmente ajudar-nos-ia a refletir sobre a "comummente assumida infalibilidade dos laureados e a importância decisiva do escrutínio e participação pública nos processos de construção da Cidade – que é, definitivamente, coisa coletiva".

Sim: - A tudo isto voltarei.



(*1), Junto de quem conseguimos para o Grupo Académico de Ovar – Secção de Cinema Infantil, uma Biblioteca Especializada
(*2), Extratos do sítio
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bibliotecas_Itinerantes_da_Funda%C3%A7%C3%A3o_Calouste_Gulbenkian
(*3), Extrato do sítio
https://bibliobeiriz.wordpress.com/2016/02/20/a-biblioteca-citacao-umberto-eco/
(*4), Edições SANA editores _ 2019
(*5), Furtado, citado por Carlos Mendes (in DisMes-FA)

Texto da responsabilidade de (*) Pompílio Souto, Coordenador da PLATAFORMAcidades; grupo de reflexão cívica || NOTA: Veja outros textos desta série no Blogue Plataforma Cidades || Contacte-nos: plataformacidades.op@gmail.com


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